Cientistas analisaram os principais projetos para a rede de transporte da capital paulista e constataram que alguns agravam o problema.
Considerando o acesso por ônibus e metrô às oportunidades de emprego, mais concentradas no centro expandido da cidade de São Paulo, pessoas brancas têm, em média, uma acessibilidade 105% maior do que pessoas negras a empregos em 60 minutos, usando apenas o transporte público. Em termos de renda, os 10% mais ricos possuem um nível de acessibilidade quase cinco vezes maior do que os 40% mais pobres, grupo que não têm acesso a um mínimo de 10% das oportunidades de emprego quando se considera a mesma necessidade de um deslocamento de 60 minutos, em média, usando metrô, trem e ônibus.
Estes são alguns dos dados que pesquisadores do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-Cepid/Fapesp) levantaram ao analisar como os principais projetos de expansão da rede de transporte público da cidade de São Paulo contemplam elementos que possam ajudar a diminuir as desigualdades. A pesquisa mostra que, enquanto algumas propostas contribuem para reduzir a diferença entre ricos e pobres ou entre populações brancas e negras na acessibilidade a melhores oportunidades urbanas, especialmente ao emprego, outras agravam as desigualdades.
Germán Freiberg, Mariana Giannotti e Tainá Bittencourt, que também atuam no Laboratório de Análises Geoespaciais da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), além de estudarem o que já está em operação, hoje, analisaram as deficiências do planejamento na hora de incluir a equidade e o acesso a oportunidades. Para compreender as limitações da abordagem tradicional, avaliaram os planos elaborados nos últimos 25 anos em relação à presença de objetivos de equidade, métricas de desigualdade e acessibilidade.
Para mostrar as possíveis abordagens orientadas à equidade, avaliaram o impacto dos oito maiores projetos previstos para a expansão da rede de transporte da cidade de São Paulo, englobando seis linhas de metrô e duas linhas de ônibus rápido (BRT). Os resultados da pesquisa foram publicados no artigo “Are mass transit projects and public transport planning overlooking uneven distributional effects? Empirical evidence from Sao Paulo, Brazil”, no Journal of Transport Geography..
Segundo o estudo, apesar de alguns planos de transporte de São Paulo mencionarem a intenção de reduzir as disparidades de acessibilidade, nenhum avalia, de fato, os efeitos distributivos das propostas. “A maioria dos planos de transporte desenvolvidos em São Paulo nos últimos 25 anos carece de métodos quantitativos para medir e avaliar os efeitos distributivos, enquanto alguns chegam a ignorar os princípios de equidade entre seus objetivos políticos”, avaliam.
A pesquisa indica que o uso sistemático de métricas de desigualdades no planejamento em transporte pode contribuir para a sua redução, quando comparado aos critérios utilitaristas predominantemente utilizados pelos planejadores e gestores. Os modelos utilitaristas focam a relação custo-benefício e avaliam apenas o impacto médio ou global das intervenções propostas, sem observar as demandas de grupos sociais específicos e os potenciais efeitos de redução das desigualdades.
Teorias de justiça distributiva da Filosofia Política na adoção de novas métricas
Com o objetivo de compreender as limitações da abordagem tradicional, os pesquisadores analisaram o Plano Integrado de Transportes Urbanos 2020 e 2025 (PITU 2020 e PITU 2025); o Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE) de 2014; o Plano de Mobilidade de São Paulo (PlanMob). Já para demonstrar o potencial de abordagens orientadas à equidade, avaliaram os projetos que constam no Relatório Integrado 2020 da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) e no Plano de Metas da Prefeitura 21/24: seis linhas de metrô (L06 – laranja; L15 – prata; L16 – violeta; L19 – celeste; e L20 – rosa) e dois corredores BRT (Aricanduva e Radial Leste)
Para fazer o estudo, os pesquisadores usaram como unidade espacial as zonas de transporte definidas em 2017 pela Pesquisa Origem-Destino do Metrô de São Paulo, e dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre população ocupada, classe social, raça, total da população de cada zona. No total, a área de estudo compreendeu 342 zonas, com 32.700 habitantes por zona, em média; 40% da população estudada está localizada na periferia da cidade, distante da maioria das oportunidades de trabalho.
O cenário base, de outubro de 2018, consiste em uma rede de transporte sobre trilhos de 300 km (104 km de linhas de metrô e 196 km de linhas de trem urbano). Já o sistema de ônibus na cidade é composto por 1.343 linhas e cobre 4,3 mil quilômetros de vias. “A espinha dorsal do sistema de transporte público de massa é majoritariamente radial, convergindo para a região central da cidade e sobrepondo-se a áreas com alta concentração de empregos e moradores de alta renda”, observam.
Um dos trabalhos dos cientistas calculou os tempos de viagem utilizando-se dos dados para a atual rede de transporte. Posteriormente, eles estabeleceram alguns cenários nos planos de expansão do metrô e do BRT, de modo a explorar abordagens e métricas orientadas para a equidade, com interesse especial nas desigualdades relacionadas a grupos sociais, como nível de renda e raça. Para avaliar o acesso às oportunidades de trabalho por meio do transporte público, os pesquisadores aplicaram critérios estudados pelas teorias de justiça distributiva, discutidas no ramo da Filosofia Política, que focam em garantir que todos tenham o suficiente para viver uma vida decente, em contraposição às abordagens tradicionais que se limitam a promover aumentos no bem-estar médio sem observar os efeitos para cada grupo.
Desigualdade na acessibilidade por classe econômica e raça
Desta forma, os pesquisadores chegaram a importantes resultados. Considerando o quesito renda e um mínimo de 20% de empregos acessíveis dentro do limite de 60 minutos de deslocamento por transporte público, por exemplo, chega-se à constatação de os 70% de menor renda na população não consegue acessar essas oportunidades de trabalho. Na análise combinada de raça e classe econômica, considerando-se o mesmo período de tempo de deslocamento, apenas o grupo de classe alta da população branca supera 20% de acessibilidade ao emprego. Nas três classes sociais (alta, média e baixa) a população branca tem uma acessibilidade a empregos consideravelmente superior à população negra.
Outro exemplo de dados produzidos na pesquisa está na análise das novas linhas de metrô já entregues, que estão em construção ou apenas em planejamento. Os pesquisadores apontam que algumas linhas de transporte apresentam reduções mais significativas nas desigualdades, combinadas com um impacto mais modesto na acessibilidade geral, em especial a L15, que atualmente está operando desde a Vila Prudente até o Jardim Colonial, e tem previsão de chegar futuramente até Cidade Tiradentes, conectando bairros periféricos de baixa renda e baixa acessibilidade. Algumas dessas linhas, no entanto, podem até agravar as desigualdades existentes, como é o caso da L20 e da L16, que conectam Santo André com a Lapa e Cidade Tiradentes com a Estação Oscar Freire, da linha 5 do metrô, respectivamente. O governo está iniciando o projeto básico da L20. Já a L16 ainda está em estudo.
“Os maiores benefícios médios, que seriam a escolha preferida sob uma abordagem utilitarista, vêm ao custo do aumento das desigualdades, especialmente nos menores tempos de deslocamento”, afirmam. Dentro de um limite de 60 minutos, os indicadores da pesquisa mostram que 10% mais ricos conseguem acessar quase cinco vezes mais empregos do que os 40% mais pobres. Além disso, é possível verificar que os novos projetos de transporte ampliam os níveis de desigualdade em relação ao cenário base.
Conclusões gerais e recomendações
De acordo com os pesquisadores, a noção de acesso potencial às oportunidades está presente no PITU 2020, no Plano Diretor Estratégico e no PlanMob, mas com diferentes graus de consistência e importância. “Dentre eles, apenas o primeiro utiliza indicadores adequados de acessibilidade em avaliações ex-ante dos efeitos esperados dos projetos planejados. No entanto, na versão atualizada do PITU 2025, essa abordagem está completamente ausente”, alertam. O PITU 2040 está em processo de elaboração desde 2021, mas ainda não foi publicada a versão final.
A pesquisa recomenda que os planejadores explorem uma variedade de abordagens e métricas orientadas para a equidade, assegurando uma visão sistêmica nas diversas dimensões relevantes às desigualdades sociais associadas ao transporte, incluindo, entre outras, limiares de tempo de acesso e diferentes grupos sociais, como renda, raça e classe. Também sugerem a inclusão de um conjunto mais amplo de atividades além do emprego, como acesso à educação, saúde e lazer. Por fim, aconselham que as métricas de desigualdade e métodos orientados para a equidade sejam adotados já na fase dos projetos, antes da etapa de seleção, e também em processos de avaliação de projetos já executados.
“Esta pesquisa não defende que a redução das desigualdades deva prevalecer a qualquer custo, mas ressalta que os efeitos distributivos devem ser introduzidos e ganhar um papel mais significativo como ferramenta analítica na avaliação de projetos, em conjunto com outras dimensões relevantes, como os custos e benefícios totais, que já são tradicionalmente utilizados no processo de planejamento”, concluem.
Criado em 2000, com início das atividades em 2001, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e, recentemente, também passou a ser um Centro de Pesquisa e Inovação Especial da Universidade de São Paulo (CEPIx-USP). O CEM reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.
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Janaína Simões
Centro de Estudos da Metrópole (CEM-Cepid/Fapesp)
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