Prof. Dr. Carlos Gomes de Souza Shalders - 1931-1933
Exercício:
Filho do inglês e futuro cônsul Robert James Shalders e da D. Clementina Gomes de Souza Shalders, Carlos Gomes de Souza Shalders nasceu
Casou-se cedo, um ano antes da formatura, pelo fato do pai de sua namorada, Estephania Ferreira Pinto, tê-la abandonado. Assim, prematuramente, ele viu-se na contingência de assumir o posto de chefe de família. Desse casamento, nasceram seis filhos.
Com o título de engenheiro em mãos, Shalders seguiu para Campinas onde trabalhou na Estrada de Ferro Mogiana como responsável pela construção do ramal Souza e Moji-Mirim até a divisa de Minas Gerais, passando por Itapira. Além do que, em 1892, colaborou com as obras de saneamento da região campineira. Da mesma forma que outros engenheiros e professores da Politécnica, participou ativamente do processo de urbanização do Estado, contribuindo também para a expansão das estradas de ferro, tão em pauta para o escoamento da produção agrícola paulista.
Decorridos dois anos, ingressou na Escola Politécnica de São Paulo como professor substituto de matemática do Curso Preliminar. Pelo seu esforço veio a tornar-se catedrático de Complementos, seguindo, nessa empreitada, 38 anos em dedicação à Escola, que, por fim, culminaram como diretor, entre 1931 e 1933.
Antes disso, em 1912, o professor levou a família inteira para a Europa para que todos se instruíssem: sua esposa estudaria pintura, sua filha Helena canto, a outra, Lucy violino, o filho Henrique piano. Nessa jornada, Anita Malfatti, a grande pintora modernista, os acompanharia para estudar pintura. Enquanto isso, seu filho mais velho partiu para Cornell, nos Estados Unidos, onde realizou o curso de Engenharia.
O depoimento do professor Luiz Cintra do Prado é em muito significativo no sentido de trazer à lume lembranças que denotam pontos ilustrativos do comportamento de Shalders quando em magistério: “O professor catedrático da minha turma foi o Dr. Carlos Gomes de Souza Shalders. Grande figura, muito respeitada dentro e fora da Escola Politécnica, como alguém que não só tinha grande competência de engenheiro, mas que também possuía excelentes qualidades para o magistério. Suas aulas eram muito agradáveis; aprendia-se a matéria sem esforços. Além dos referidos capítulos de matemática, lecionava também Geometria Descriptiva.
Ele adotava uma maneira especial de julgar os alunos nos exames orais: sorteavam-se três pontos, um para cada uma das partes que o programa podia ser dividido. O aluno deveria, a seguir dar seu próprio julgamento sobre o preparo possuído nos pontos sorteados (…) A seguir, o professor Shalders examinava o aluno sobre um dos três pontos e por ali fazia o julgamento das três partes mantendo ou reduzindo (na mesma proporção) as notas atribuídas pelo aluno às mesmas partes do exame. Ele, porém mantinha seu julgamento em sigilo até depois de feitos os exames de todos os alunos chamados aquele dia. O outro membro da banca, era o professor Luiz Ignácio Romeiro de Anhaia Mello, examinava o aluno num dos pontos restantes e por aí fazia seu julgamento quanto a esse ponto e, analogamente, dosava as notas propostas pelo aluno para os outros dois pontos sorteados inicialmente. Quando estava esgotada a lista dos examinadores, estes eram convidados a deixar o recinto (…) O aluno ficava assim responsável pela nota conseguida para aquele ponto sobre o qual não tinha havido exame real.” (SANTOS, Maria Cecília Loschiavo dos. Entrevista com o professor Luiz Cintra do Prado, 1982).
Entretanto, costumava manter rigorosa disciplina em sala de aula e exigia grande esforço dos estudantes em termos de conhecimento para concluir a matéria. Segundo Arquimedes Pereira Guimarães (Magalhães era presidente do Grêmio Politécnico em 1917) o docente “implantava uma espécie de ‘terror cósmico’ na calourada, sem razão aliás, tal como o vinham a reconhecer depois os antigos discípulos. Era tão somente justo nas notas baixas com que brindava o cascabulhada ignorante.” (SANTOS, Maria Cecília Loschiavo dos. Entrevista com o professor Archimedes Pereira Guimarães, 1982).
Aos 95 anos de idade, o professor pronunciou em depoimento que vivia de bom humor com a vida e não tinha preocupações. Sobre sua relação com os discentes comentou: “fui pontual e nunca tolerei que meus alunos se atrasassem, por disciplina, mas eles confundiam isso com braveza e tinham medo.” (IZAR, Margarida Izar. Doutor Shalders, aos 93 anos, é um exemplo à nova geração IN: Diário da Noite, 1956).
No papel de diretor, Shalders enfrentou um grande desafio: a Revolução Constitucionalista de 1932. Sob seu comando, a Escola de Politécnica de São Paulo teve participação importante nesses acontecimentos, dado que na histórica Congregação por ele presidida, definiu-se que a Escola aliar-se-ia ao governo paulista contribuindo principalmente na consecução de artilharia. Veja-se, nesse sentido, o exemplo das granadas – segundo relatos, feitas ali aos milhares – em um momento no qual era impossível importar armamentos.
Assim, foram desenvolvidos materiais para a guerra, que ademais dos fins a que se destinavam, também representavam avanço tecnológico para a época. Nesse seguimento, corrobora a criação de um lança chamas, produzido no Laboratório de Ensaios Materiais (LEM) e “a granada de mão … adaptada ao fuzil com bocal apropriado, aumentando, dessa maneira, o seu alcance para a média de
Do conflito, participaram o engenheiro Roberto Simonsen e as empresas: Pirelli, Rhodia, Nadir Figueiredo, Antártica Paulista e Matarazzo. A despeito da proibição da diretoria, alguns discentes também tomaram parte da Revolução, o que acabou por prejudicar seus estudos. Por outro lado, dado esse conjunto de fatores, é interessante notar o sentido cívico que assumia a Escola: “… todos sabem que a Escola Politécnica cumprirá o seu dever, que ela não é só uma fábrica de técnicos mas também uma escola de civismo como a queria o velho Paula Souza.” (Revista Politécnica, 1932).
Ultrapassando as fronteiras do âmbito acadêmico, Shalders também assumiu papel ativo na sociedade: assistiu à administração da São Paulo Light entre os anos de 1889 e 1907; esteve à frente da primeira Junta da Caixa de Aposentadorias e Pensões de
Ainda assim, para além do trabalho como engenheiro e professor, interessou-se pelos assuntos ligados ao espírito e à alma. Foi vice-presidente e membro do Conselho Deliberativo da Federação Espírita do Estado de São Paulo e também o primeiro presidente da Associação de Moços de São Paulo. Um artigo publicado no jornal Diário da Noite no ano de 1956 elucida que Shalders “aos 60 anos renunciou ao credo protestante e em três anos teve ciência de que existia o outro mundo: ouviu (disse-nos) os espíritos falarem e fez-se espírita (por conhecimento, não por fé). A sua fé está na religião secular, tão pura, da Bíblia: fazer caridade e ter vida correta”. Era também hábito diário do professor ir de porta em porta por bairros distantes levar palavras de fé aos que dela necessitavam. E nos seus 93 anos, relatou ainda ajudar a mais de quinze instituições de caridade.
Enquanto docente, as histórias que o envolvem são inúmeras. Em depoimento, o ex-aluno José Sampaio de Freitas conta um episódio peculiar: “Certa vez, havendo acúmulo de exames, permitiu que fizessemos a prova escrita em casa … a saída, um a um, apertamos-lhe a mão, num compromisso de honra de sermos honestos. No dia seguinte … o dr. Shalders, profundamente indignado, reprovava meio mundo diante das provas que eram … parecidas entre si.” (IZAR, Margarida Izar. Doutor Shalders, aos 93 anos, é um exemplo à nova geração IN: Diário da Noite, 1956). Em outra história, não menos curiosa, conta-se que em uma “ocasião, uma pessoa bate à porta e pede licença para entregar ao irmão o guarda-chuva, Shalders abre o guarda-chuva e constata que dentro havia cola.” (Poli-memória: O professor Shalders visto por um neto. Depoimento do neto: arquiteto William Hentz Gorham, 1993).
Já, o engenheiro D’Alessandro guarda em sua memória uma imagem que se assemelha a uma fotografia cristalizada acerca dos costumes do docente: “quem passou pela sala do Dr. Shalders, que era o antigo auditório de matemática do prédio velho, há que se lembrar que o velho mestre nunca dispensou a sua bilhazinha de água, invariavelmente posta à sua esquerda, sobre a cátedra, e acompanhada de um copo de cristal de bojo largo.” (D’ALESSANDRO, Alexandre. A Escola Politécnica de São Paulo, 1941). De acordo com os relatos, parece que manteve esse mesmo “ritual” durante toda a sua vida acadêmica.
Na cerimônia de colação de grau da turma de 1931, Shalders discursou acerca da profissão, ressaltando aos formandos que como engenheiros -“gente do engenho”- deveriam ter capacidade criativa para enfrentar e solucionar novos problemas, não se limitando a produzir aquilo que outros já executaram. Nesse bojo, afirma: “(…) fazer o que outros já fizeram, seguir caminho já desbravado por outros, é coisa sempre relativamente fácil (…) dificilmente, porém, conseguireis vos tornar notáveis se não tiverdes a oportunidade de enfrentar um problema novo e resolve-lo”. Após a parabenização aos alunos continua “é claro que essa conquista vossa é o resultado de um esforço bem orientado; vosso diploma representa trabalho honesto realizado.” (Revista Politécnica, 1931).
O professor Shalders viveu 100 anos. Sem fumar, nem beber, seus hábitos alimentares rotineiros eram de todo simples: começava o dia comendo frutas e o findava com uma tigela de coalhada. Em depoimento seu neto, William Hentz Gorham, lembra: “sempre andava com o guarda-chuva, óculos (só metade de baixo para ler) e um livro. Estava sempre lendo. Em casa, sua paixão era a música clássica. Estava sempre ouvindo suas óperas (… ) nunca saia de casa pela manhã sem engraxar os seus sapatos e aos domingos o ritual de aparar a barba”. Bem humorado, o docente revela o seu segredo: “cultive o bom humor e verá que é fácil, sempre agi desse modo e nunca tive dor de cabeça, nem sei mesmo o que é ter dor de espécie alguma no corpo e no espírito.” (IZAR, Margarida Izar. Doutor Shalders, aos 93 anos, é um exemplo à nova geração IN: Diário da Noite, 1956).
O perfil do diretor-professor era o de um homem disciplinado, pontual e rigoroso, adepto da ordem, da noção de cumprimento do dever. Homenageado em vida por suas atividades, no ano de 1949, recebeu o título de Professor Emérito da Escola Politécnica de São Paulo e também os títulos de Cidadão Paulistano e Cidadão Paulista, outorgados pela Politécnica, pelo Estado e Prefeitura respectivamente.
O professor Tharcísio Damy de Souza Santos, em reunião solene da Congregação no dia 2 de outubro de 1963, data que acercava o aniversário de Shalders, o saudou proferindo as seguintes palavras: “Raras vezes é dado pela Providência Divina o poder de comemorar o centenário de professor eminente, cidadão exemplar e educador emérito, que, de sua vida de professor e de engenheiro fez um padrão para as gerações que por essa escola passaram”. (Poli-memória: O professor Shalders visto por um neto. Depoimento do neto: arquiteto William Hentz Gorham, 1993).
Já bem idoso, ficou surdo e com dificuldades de visão, o que lhe causou grandes transtornos, à medida que tais circunstâncias o impediam de ouvir música e ler, hábitos que tanto apreciava. Por diversas vezes, conta seu neto, “fez o comentário de que Deus havia se esquecido dele”. Faleceu no dia 9 de dezembro de 1963, com mais de 100 anos de idade, completamente lúcido, tendo na véspera discutido com o filho problemas de matemática.