Na época em que ingressou na faculdade, eram poucas as mulheres nos cursos de engenharia. Professoras, então, ela se lembra de uma, que depois foi sua orientadora de mestrado. Porém, mesmo no ambiente predominantemente masculino, Liedi não se sentiu prejudicada. Seus colegas e vários de seus professores a tratavam muito bem, e ela lembra disso com carinho. Foi indicada para empresas e convidada à monitoria por eles — chegou a ser a única monitora mulher entre os oito membros do seu Departamento.
Existiram, é claro, professores misóginos nesse processo, mas ela ressalta que foram poucos. Alguns chegaram a falar coisas bem graves, mas isso, na verdade, a incentivava a permanecer na engenharia e provar o contrário do que ouvia. Ela sabia, desde o início, que iria enfrentar certas dificuldades durante a vida toda, não só nos bancos escolares.
Nascida em Jarinu, Liedi, filha de Luiz e Leila Bernucci, não era lá muito fã da escola quando pequena. No seu primeiro dia de aula, foi questionada sobre o que tinha achado da escola, e respondeu que gostou, mas não precisava voltar no dia seguinte. Eu achei que a escola era uma coisa maravilhosa, eu ia sair de lá lendo! Mas só ficaram me mandando escrever ‘a, a, a, a’. Não queria voltar, não. Sua mãe vivia sendo chamada na escola. As coisas começaram a mudar no ensino médio.
Liedi Légi Bariani Bernucci sempre foi uma aluna muito boa em matemática e física, “química mais ou menos”. Após a turma toda ir mal numa prova de física, ela e algumas amigas resolveram ter aulas particulares da matéria. O professor contratado era um aluno da Escola Politécnica, e a jovem estudante ficou encantada com a engenharia logo ao conhecê-la. Parecia tão simples como ele conseguia explicar as coisas para mim, e a professora não. Eu fiquei pensando “nossa, engenharia é demais!”.
Liedi passou no vestibular para estudar Geologia assim que terminou o colégio. Depois de um tempo, decidiu que estava na hora de tentar a engenharia: conseguiu uma bolsa no cursinho, prestou vestibular novamente e entrou na Poli, na graduação de Engenharia Civil, turma de 1977. Na verdade, até pensou em prestar ITA, pois achava bárbaro aeronáutica. Mas, naquela época, o ITA não aceitava mulheres, então acabou decidindo pela Poli.
“Meu avô materno construía, meu pai sempre gostou de obra, muito. Acredito que isso tenha ficado dentro de mim, de alguma forma, não sei nem explicar”, conta sobre a decisão de escolher a . Eu queria ser engenheira civil.
A Poli sempre foi importante para Liedi. Mais que o local onde estuda ou trabalha, mais que uma instituição. Na verdade, é de modo afetivo que se refere à Escola, e isso não tem relação com o fato de ser sua diretora atualmente. A verdade é que ela foi apresentada à Poli e à engenharia ao mesmo tempo, pela mesma pessoa. As duas coisas estão interligadas desde aquele momento durante o início do então colegial, e, aparentemente, a paixão pela engenharia se tornou também paixão pela Poli.
Um fator primordial nesse momento foi o apoio da família, que sempre esteve ao lado de Liedi quanto à sua decisão de estudar engenharia. O ponto “isso não é coisa de mulher” simplesmente não existiu, pelo contrário: sua família serviu como suporte nessa fase da vida da estudante. Nesse caso, por trás de uma grande mulher está outra grande mulher — a irmã de Liedi, a matemática NOME, esteve ao seu lado durante todo esse período de formação, ajudando nos estudos e, posteriormente, respaldando-a para que pudesse trocar um emprego estável e bem remunerado pela oportunidade de fazer mestrado na Poli, com uma bolsa de aproximadamente ¼ de seu salário antigo.
Hoje vejo que tive sorte. Minha família me apoiou, ninguém falou que engenharia é uma carreira masculina, ou alguma coisa contra. Não, nunca. Mas hoje eu sei que foi sorte, porque acontecer isso na década de 1970?! Quando escuto que acontece isso ainda hoje, e meninas não vêm [para a engenharia] porque a família impede! Então, hoje eu vejo a sorte que tive. Minha mãe, meu pai, minha irmã, eles deram a maior força. (…) Quando surgiu a oportunidade de mestrado, minha família disse “continua estudando, você gosta de estudar”.
Embora considerasse a graduação na Poli bem difícil, Liedi conta que foi aqui que tomou gosto pelos estudos. Ela estudava mesmo, para valer. Pensava que, como primeira engenheira de uma família de classe média, sem contatos na área, era na Poli, sendo uma boa aluna, que encontraria oportunidades para entrar no mercado — e estava certa. Foram os seus professores, a quem é muito grata, que abriram as portas para ela.
Têm professores que vinham no meu caderno me explicar, sabe? Tem pessoas que eu admiro até hoje, pessoas muito boas. (…) Eles me ajudaram de fato. As pessoas são muito generosas sem contar para os outros. Olhando para trás, eu vejo que o professor não precisava ter feito nada disso. É uma lição para mim. Às vezes, uma palavra de um professor pode mudar sua vida.
Liedi Lédi Bariani Bernucci é uma mulher elegante, e acessível. Cabelos castanhos na altura dos ombros e um sorriso amigável, a diretora da Escola Politécnica aparenta ser uma figura de poder, mas não de forma arrogante. Ela fala baixo e calmamente, mas se faz ouvida em qualquer situação, e dá para perceber em uma conversa que não é uma mulher que gosta de ficar parada. Suas unhas, muito bem pintadas, e o toque de maquiagem reforçam mais uma quebra de estereótipos.
A verdade é que Liedi Bernucci é apaixonada pelo que faz — a engenharia, a pesquisa, a ciência e a docência — desde o início, e esse é o tipo de amor cultivado com os anos. A empolgação e a paixão transparecem no brilho dos seus olhos quando fala sobre a conclusão de uma pista de pouso em um aeroporto.
Quando a gente olha e pensa, “ eu ajudei a descer um 380* em Guarulhos! Sabe?! (risos) É legal! É muito legal. No dia em que desceu o 380, o pessoal me chamou para ir lá, e foi muito legal. Encontrar todos os engenheiros, tirar foto, entrar na pista, entrar no 380… Seu primeiro trabalho no mercado profissional da Engenharia Civil foi na empresa Figueiredo Ferraz. A diretora conta que gostava do serviço, estava trabalhando em um projeto muito legal e as pessoas era ótimas com ela. Relembra de uma figura em especial que foi uma inspiração para ela nesse período. Na empresa, havia uma engenheira muito interessante, que tinha muitos filhos, era simpática, elegante, muito inteligente e trabalhava com projetos que Liedi achava super complexos. Ela se lembra de olhar para aquela mulher e pensar: “Gente, dá para ser tudo isso!”.
Sobre o seu mestrado, a engenheira é categórica em dizer que foi o momento em que mais estudou na sua vida. Ela estudava muito mesmo, e na época — começo dos anos 1980 — as pessoas não costumavam seguir carreira acadêmica. Então, surgiu a oportunidade de ir para a Suíça.
Um professor suíço veio buscar dois alunos politécnicos para uma triangulação acadêmica entre Suíça, Brasil e Costa do Marfim, num estudo sobre solos tropicais. A orientadora de Liedi entendeu que esse professor queria dois alunos homens, então ela nem se candidatou para as vagas. Um dia, ao chegar na Poli Civil, fez um caminho diferente, e por acaso, passou no corredor onde estavam sendo feitas as entrevistas para o projeto de intercâmbio. Seus colegas, acenaram para ela, que respondeu e seguiu em frente. O professor suíço perguntou: “quem é esta moça?”. Seus amigos responderam que era uma colega do mestrado, e o professor questionou o porquê dela não estar ali com eles. Pediu então para a chamarem, e gostou da engenheira. As duas vagas se transformaram em quatro, e Liedi Bernucci estava a caminho da Suíça.
Foi uma sorte ter passado naquele corredor, alguém ter me dado tchau, ele ter percebido e mandado me chamar. No começo, ela ficou incrédula. Como assim, duas bolsas viraram quatro? Mas, pouco depois de os dois primeiros alunos embarcarem, ela recebeu vários documentos e a confirmação de que o programa de intercâmbio iria acontecer. Graças à sua irmã, que recomendou as aulas de francês, ela foi para a Suíça falando francês e inglês — o alemão aprendeu no dia-a-dia mesmo.
Seu orientador na Suíça foi um homem que a inspira até hoje. O físico Franco Balduzzi era homem, europeu, branco, alto e economicamente estável, além de possuir grande consciência social: questões de gênero, raça e meio ambiente, por exemplo, já eram preocupações suas. Seu projeto consistia na construção de estradas rurais e pavimentadas na Costa do Marfim, na época ainda associada à França. Porém, sua equipe era diferente do comum: contava com, além de engenheiros, uma botânica para pensar no reflorestamento das áreas de empréstimo de materiais, com plantas que pudessem ser comestíveis para alimentar a população desses locais, que eram muito pobres; e uma socióloga, para estudar as dinâmicas sociais e familiares da população local e entender quem plantava, quem chefiava e com quem deveriam negociar — no caso, eram as mulheres.
“Esse professor era fantástico. Você imagina um processo de forma macro na década de 1980?”, pontua a diretora. Ele era uma pessoa sem restrições de gênero, muito a frente de seu tempo. Uma pessoa fantástica. Essa foi uma pessoa que fez muita diferença na minha vida. Ele era genial, queria entender as coisas.
Quando retornou ao Brasil, depois de realizar a parte experimental do seu mestrado na Suíça, Liedi Bernucci já se tornou professora da Poli: chegou no País em abril, e em maio já estava dando aulas. Para seu doutorado, voltou à ETHZ, na Suíça, e seguiu com seu professor orientador.
Uma das coisas que seu orientador sempre falava era que “você não pode ir na África e extrair coisas deles, precisa doar também, doar conhecimento”. Ele defendia que a dívida histórica e social que europeus e brasileiros têm com o continente africano não pode ser corrigida nos aspectos originais, mas as pessoas podem retribuir de alguma forma para compensar os estragos, e isso pode ser feito por meio da educação.
Aconteceu na Suíça uma vez um episódio de preconceito contra mim. Eu fui lá contar para o meu orientador. Ele chamou os caras e deu uma esculhambada. Depois, ele me chamou e pediu para eu refletir sobre uma coisa — isso aconteceu comigo por ser mulher, por ser latino-americana. Mas tinha uma pessoa que poderia ser mais discriminada que eu: uma mulher, latino-americana e preta. “Se fosse preta, ia ser pior ainda. Pense sempre nisso. E se tiver uma coisa que você possa fazer, faça”.
O tema de seus estudos se tornou engenharia de transportes, estradas e solos após seu orientador recebê-la na Suíça e falar sobre a importância do tema. Ele disse que conhecia um pouco do Brasil, e que faltavam muitas estradas aqui. Segundo ele, o país não dava mobilidade para as pessoas. Não era só uma questão de riqueza, mas de mobilidade. Eu pensei, ‘deve ser uma coisa boa’. Eu mudei meu mestrado, que era sobre fundações, e falei: vou trabalhar com estradas. Vou fazer o que ele está me sugerindo.
Seu professor era um homem que gostava de compromissos, e propunha promessas aos seus alunos. Eram como metas de vida. Segundo ele, os orientandos tinham que pensar bem no que iriam prometer, já que teriam que cumprir. Liedi fez algumas promessas, e diz que já cumpriu várias. A que ainda pretende: fazer algum tipo de contribuição educacional para a África.
Uma dessas promessas foi a de implantar um laboratório de asfalto no Brasil. A pesquisadora, então, foi junto com um colega da Poli que estudava o mesmo tema visitar um centro de pesquisa em uma universidade francesa. Lá, trocaram ideias sobre a viabilização de um laboratório da área, especificamente de solos tropicais, a fim de replicá-lo no Brasil — o que fez com sucesso. O Laboratório de Tecnologia de Pavimentação (LTP) é referência em pesquisa e coordenado pela professora Liedi até hoje.
E essa foi uma das missões já cumpridas por ela, mas não para por aí.
Uma das principais realizações da professora, segundo ela mesma, é o projeto de educação que desenvolveu em conjunto com outros três colegas, Laura M.G. Motta, Jorge A. P. Ceratti e Jorge B. Soares. Uma de suas missões sempre foi compartilhar conhecimento e ajudar na formação de novos engenheiros. Para isso, os quatro professores, que eram muito amigos, escreveram, em 2006, o livro Pavimentação Asfáltica: Formação Básica para Engenheiros, que serve de base para cursos de engenharia civil por todo Brasil. Junto com o livro, foi disponibilizado um material digital para 30 aulas, preparado para auxiliar os professores a espalhar o conhecimento, além de aulas para os docentes interessados, capacitando pessoas que ampliariam ainda mais o alcance do projeto.
A pesquisadora, junto com seus parceiros nesse trabalho, viajou para todos os cantos do Brasil na implantação desse curso. Até hoje, ela conta que continua recebendo retornos de alunos graças a esta iniciativa com muita satisfação.
Além disso, a professora é uma grande entusiasta das modalidades de pesquisa em rede, procurando, sempre que possível, unir os conhecimentos e os projetos com outros centros de tecnologia pelo mundo que estejam trabalhando em áreas semelhantes.
Liedi Bernucci assumiu oficialmente a direção da Poli no dia 8 de março de 2018. Em 124 anos de instituição, a primeira mulher a ocupar a posição máxima na gestão da Escola tomou posse no Dia da Mulher. Há dois anos no cargo, a professora Liedi já lidou com o lado bom e aquele nem tanto da diretoria. Quando fala sobre isso, um ponto de destaque é o autoconhecimento. A diretora diz que aprendeu sobre si mesma: aprendeu que é muito boa com algumas situações, e que em outras, o melhor a fazer é delegar para a pessoa certa.
A exemplo de suas colegas que contribuíram com esse especial em homenagem a mulheres pioneiras, hoje, em um cargo mais alto, ela pontua que consegue sentir diferenciação de gêneros mais forte nesse ambiente do que havia sentido no âmbito profissional, no qual, na verdade, ela não sente nenhuma restrição. Mas ela escolhe não ligar. “Tem coisas que as pessoas falam, na maior parte das vezes sem querer, porque estão habituadas a falar e a sociedade a aceitar — cada vez menos”. Porém, isso não a desmotiva nem um pouco. “É como na graduação, quando faziam isso e me incentivavam ainda mais”.
Uma das preocupações de Liedi como gestora, agora, é exatamente o desenvolvimento emocional, das chamadas soft skills, dos alunos e alunas da Poli, e este é um dos projetos no qual ela está trabalhando atualmente.
Algo que chama a atenção na diretora da Escola Politécnica é que ela percebe os fatores do meio que são afetados pelo fato dela ser mulher, mas nunca se deixou prejudicar, usou o ambiente como motivador para continuar sua trajetória. Hoje, Liedi Légi Bariani Bernucci é doutora em Engenharia Civil, professora titular no Departamento de Engenharia de Transportes da Poli, coordenadora do Laboratório de Tecnologia de Pavimentação (LTP), um laboratório de pesquisa respeitado, vencedora de inúmeros prêmios, pesquisadora e Bolsista de Produtividade em Pesquisa nível 1C do CNPq. Casada, mãe de dois filhos, teve sua primeira neta em 2019, mais de 160 trabalhos publicados. Primeira diretora mulher da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. E, sobretudo, uma mulher persistente.
*o Airbus A380 é o maior avião comercial do mundo. No Brasil, só três aeroportos estão certificados para recebê-lo: Guarulhos, Viracopos e Galeão.